quinta-feira, 21 de maio de 2015

Shakespeare e Psicanálise: Inveja e Ciúme em Otelo




"Acautelai-vos senhor, do ciúme; é um monstro de olhos verdes, que zomba do alimento de que vive."

Otelo é uma obra extremamente profunda, a qual trabalha de forma visceral o íntimo do homem, versando sobre dois sentimentos mais precipuamente, a saber, a inveja e o ciúme. A inveja é um dos sete pecados capitais, ou seja, o grupo dos pecados que originam os demais. Esse fato é extremamente importante, uma vez que vive-se numa época em que a virtude consiste em um dever ser, ou seja, na capacidade de controlar o impulso aos pecados. Todo pecado sempre ataca uma virtude, mas a inveja tem uma peculiaridade, qual seja, ela ataca todas as virtudes e, portanto, possui uma destrutividade muito grande. Essa destrutividade é demonstrada naquilo que o outro possui de bom.

Sendo assim, a inveja é um sentimento dual, isto é, se dá na relação entre dois indivíduos, uma vez que o outro sempre tem algo que eu não tenho e, assim, como não tenho aquilo que invejo não consigo me alegrar com nada.

Para o invejoso, receber algo de bom do outro é visto como uma humilhação, já que o invejoso entende que ele deveria possuir a virtude que o outro demonstra. Há um desejo intrínseco ao invejoso, que busca incessantemente o que lhe falta no outro. Em primeira análise, isso poderia ser entendido como algo positivo, pois há uma relação humana de troca estabelecida. Contudo, como já dito o invejoso é incapaz de receber algo bom do outro, de modo que ele não busca o que lhe falta no outro para que assim possa ser preenchido, mas sim para destruir o outro.

O ciúme, por sua vez, é  um sentimento que se dá numa relação triangular, em que há um terceiro envolvido. Esse sentimento, ao contrário da inveja, pode possuir algo de bom, como cuidar do outro, o qual sente-se ciúme. Entretanto, o ciúme delirante pode ser tão perigoso quanto a inveja, e é esse ciúme que se apresenta em Otelo.

Para que o ciúme seja delirante é preciso ter uma base na inveja, assim como, um núcleo narcísico, o qual não suporta a ideia de não ser o centro das atenções. O ciumento entende que a vida do outro deve ser alicerçada na dele, deve se alimentar na sua vida. Assim, não lida bem com a independência do outro. Para o ciumento delirante, há sempre o sentimento de traição iminente, de forma que é apenas uma questão de tempo para que a traição aconteça.

Na obra, Otelo é descrito como um indivíduo muito virtuoso, o qual todos olham de baixo. A sua amada, Desdêmona, também é muita virtuosa, sendo que a sua principal virtude é a ingenuidade, que a faz acreditar na bondade do mundo, e sabe-se que a alegria passa por uma dose de ingenuidade.

A inveja surge na trama com Iago (alferes de Otelo) e como sabemos, a inveja busca destruir todas as virtudes, logo, Iago tomado pela inveja do virtuoso Otelo, buscará destruí-lo. Para Iago, conviver com alguém tão virtuoso é insuportável. Dessa forma, Iago traça a destruição de Otelo através daquilo que ele mais ama: Desdêmona. Já dizia um sábio que o caminho mais curto para destruir alguém é por meio daqueles que este ama. Assim, Iago busca pôr "veneno" na alegria do casal:
"Pois, enquanto este imbecil honesto pede à bela Desdêmona que cure a sua sorte, e ela sobre isso insiste junto ao Mouro, veneno deitarei no ouvido dele, com dizer que ela o faz só por luxúria; quanto mais houver feito ela por ele, mais, junto ao Mouro, há de perder o crédito. Transformarei em pez sua virtude, e com a própria bondade apresto a rede que há de a todos pegar."
Iago planta em Otelo a ideia de que Desdêmona o traíra, despertando o seu ciúme. Perceba que Iago apenas desperta o ciúme que já pertence a Otelo e aqui está o nó da meada. Otelo se abastece das conquistas, como se procurasse preencher um vazio (hoje preenche-se com bens materiais). Falta, portanto, sentimentos à Otelo, o que fica claro na seguinte passagem:
"Ela me amava pelos perigos pelo que eu havia passado, e eu a amava por ter ela se compadecido de mim."
Ou seja, Desdêmona, na visão dele não se apaixonou pelos seus sentimentos, pelo que ele é, mas por aquilo que ele é venerado. O que o faz duvidar sobre o amor de Desdêmona, pois ela não o amou, mas antes suas glórias. Sendo assim, a semente plantada por Iago logo floresce em Otelo, pois já havia terreno próprio para isso, afinal, o ciúme delirante vê a traição como algo iminente, de tal modo que não consegue enxergar o bom no mundo, assim como o invejoso.

O polo passivo da história desenrola-se totalmente em Desdêmona. A sua ingenuidade não lhe permite desconfiar dos outros, enxergar o mal. E isso faz com que ela não consiga defender-se, já que só acredita na bondade. Mas, ainda nesse ponto, mesmo que Desdêmona quisesse se justificar não conseguiria, dado que é impossível provar algo que não aconteceu. Isto é, Desdêmona não tinha como justificar algo que sequer aconteceu, provar um não-ser. A atmosfera criada por Iago era fantasiosa, logo fora do real e impossível de ser provada.

Os elementos que foram construindo essa atmosfera, contudo, só foram possíveis por causa de Otelo. Se o seu sentimento de ciúme não fosse delirante, jamais chegaria ao ato de matar Desdêmona, de tal maneira que ela foi tão somente o elemento final do seu ciúme.

Esse ciúme possui um traço indispensável - a insegurança - pois, Otelo não acredita que Desdêmona possa de fato lhe amar, tampouco ser fiel. Otelo sente-se inadequado àquela sociedade, o Mouro sente-se apenas um instrumento de Veneza. A sua insegurança alimenta ainda mais seu ciúme, assim como seu narcisismo. Em Otelo sobram as marcas de guerra e falta-lhe sentimentos.

O narcisismo faz Otelo em um primeiro momento acreditar que as suas glórias seriam suficientes para fazer Desdêmona amá-lo, mas, em seguida, a insegurança trata de pulsar o ciúme, que o faz acreditar em todo teatro criado por Iago, já que ele necessitava desses elementos para adaptar a realidade criada na sua mente, em que inevitavelmente Desdêmona o trairia.

A inveja de Iago o faz destruir tudo, e o ciúme de Otelo ser ele o protagonista da destruição. Destruição das suas próprias virtudes, daquelas até que não existiam, mas que Desdêmona acreditava. A bela jovem, essa era a grande virtude da história, a qual transpirava pureza e ingenuidade. Uma ingenuidade que parece incompreensível.

O coração do Mouro era terra arada e pronta para as sementes do Invejoso e perspicaz Iago. Este sofre por viver, mas com tudo a sua volta destruído. Aquele sofre por saber que o seu ciúme o fez destruir suas virtudes, sobretudo, a maior delas, chamada Desdêmona.
"Peço-vos por favor que em vossas cartas, ao relatardes estes tristes fatos, faleis de mim tal como sou, realmente, sem exagero algum, mas sem malícia. Então a alguém tereis de referir-vos que amou bastante, embora sem prudência; a alguém que não sabia ser ciumento, mas, excitado, cometeu excessos, e cuja mão, tal como o vil judeu, jogou fora uma pérola mais rica do que toda sua tribo."

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